Raquel Montero

Raquel Montero

domingo, 17 de novembro de 2013

O problema da criminalidade é o criminoso?


Era criança quando ainda brincava com pião. Cresceu órfão de pai e esperando sozinho em casa, a mãe voltar do trabalho. O dinheiro não dava para uma babá e a escola era até certo horário, não tinha escola de tempo integral. O abandono o acompanhou na escola, com a ausência de aulas e de professora. O tempo das aulas que faltaram trouxe o futebol na rua, a pipa no morro e a televisão no bar. O tempo trouxe também novidade para a próxima estação. Agora a mãe tinha um novo emprego, comemorado porque aumentou a renda da família, deixando-a menos raquítica.
A novidade correu e o dono da casa tratou de aumentar o aluguel do cômodo em que morava mãe e filho. A mãe cogitou novo endereço, mas novo endereço deixariam mãe mais longe do trabalho e filho mais longe da escola, criando a necessidade de mais condução e mais condução criaria mais despesa para a passagem do ônibus. Final das contas; ficaram no mesmo lugar e o aumento no salário da mãe só foi sentido pelo dono do aluguel.
Chegaram as férias e com a escola fechada, a meninada criava sua cultura na rua, sem instrução nem coordenação, só criança na rua. Uma hora o futebol cansou e a briga começou. Um dos envolvidos deu uma pedrada em outro menino, o menino respondeu com outra pedra, e correu. Na corrida trombou com outro menino, que acabou sendo jogado em cima do carro que passava pela rua. O acidentado foi para o hospital e o menino que trombou com ele, foi para a Delegacia da Infância e da Juventude, e após, com as interpretações dadas ao caso, o menino foi levado para a Fundação Casa. Tinha 12 anos.
Na Fundação Casa, o menino perdeu ainda mais aulas. A mãe só podia visitá-lo a cada dois meses porque além de ser em outro município a viagem toda abrangia quatro ônibus e sua renda não comportaria mais este gasto sem criar dívidas para outras necessidades.
A medida de internação na Fundação Casa é, segundo determina a lei, uma medida sócio-educativa, para contribuir com o adolescente. Porém, na prática, a lei não é cumprida, e o que ocorre de fato é educação para o crime. Sem a aplicação das medidas sócio-educativas que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê para a Fundação Casa, o adolescente fica sem escola, sem o tratamento psicológico imprescindível para essa situação, sem atividades multidisciplinares para o completo desenvolvimento da pessoa, sem a participação familiar elementar, sem os tratamentos de saúde indispensáveis para uma vida sadia, e sem tantos outros direitos previstos na lei para serem respeitados na vida do adolescente.
Sem tanta coisa, o que fica é espaço para várias outras coisas, que não são boas, mas assim como a erva daninha, nascem no terreno fértil do abandono, dentre elas, a criminalidade.
Com tempo vago e sem instrução, o menino fez novas amizades. Com os novos amigos, novas histórias, e já sem tanta brincadeira, novas aventuras com crack na mão. Em mais uma confusão, sem se saber bem o motivo, houve rebelião, o menino foi confundido e sofreria punição. Em sua defesa, fugiu no ápice do motim. Foi para casa. Descobriu que sua mãe tinha morrido. A rua passou a ser seu lar.
Na rua, teve fome, frio, dor, carência. Era só um menino para entender tanta coisa. Mas o tráfico entendeu suas mazelas e soube preenchê-las com rapidez. Cobrou caro depois, e o menino teve que pagar. No primeiro assalto, com 15 anos, foi pego pela Polícia. O destino foi a Fundação Casa de novo, porque o sistema finge que ensina e pessoas da sociedade fecham os olhos para dizerem que acreditam. E nessa crença irreflexiva, parte da sociedade e autoridades, pregam que a origem da criminalidade está no criminoso,  e a solução para ela está na existência de mais leis punitivas, em penas mais graves e na redução da maioridade penal. Mas se assim fosse, por que a reincidência só aumenta apesar de tantas leis punitivas e da criação de penas mais rigorosas? Se o problema da criminalidade é o criminoso, o problema da fome é o esfomeado? Se a criminalidade resolve-se com a punição do criminoso, a fome resolve-se com a punição do esfomeado?
Antes de falar em reduzir a maioridade penal, falemos primeiro das diversas leis que estabelecem direitos e deveres e não são cumpridas, como as que tratam da educação, da saúde, da cultura, da moradia, etc. E falando dessas leis, façamos com que elas sejam executadas tal qual são previstas, com seus direitos e deveres. E após a execução correta dessas leis, analisemos se ainda será necessário falar em mais leis punitivas, penas mais rigorosas e redução da maioridade penal. 
Garanto, com a convicção proveniente do estudo e da experiência na militância por direitos humanos, militância essa que abarca denúncias graves de violação de direitos que recebi como movimento social e durante os cinco anos que estive na Comissão de Direitos Humanos da OAB, que leis punitivas serão de necessidade ínfima e a redução da maioridade penal será considerada aberração por quem a defende, diante da existência concreta, e não só formal, das leis emancipadoras que estabelecem direitos e deveres.
Raquel Montero

 http://acervo.folha.com.br/fsp/2011/08/15/15 - Vide pag. "Cotidiano - C3" matéria que trata de projeto que desenvolvemos na Fundação Casa, denominado "Projeto Meditação".



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